ENTENDA POR QUE A JUSTIÇA DETERMINOU QUE A EMPRESA LOGGI RECONHEÇA VÍNCULO DE EMPREGO COM SEUS FRETISTAS
No dia 06 de dezembro de 2019, a Justiça do Trabalho determinou que a empresa Loggi reconheça o vínculo de emprego com seus prestadores de serviços e que se abstenha de contratá-los como autônomos.
A decisão foi proferida nos autos Ação Civil Pública n. 1001058-88.2018.5.02.0008 movida na 08ª Vara do Trabalho de São Paulo pelo Ministério Público do Trabalho em face das empresas Loggi Tecnologia LTDA e L4B Logística LTDA.
A decisão proferida pela magistrada Lavia Lacerda Menendez chama atenção por fundamentar e interpretar a legislação a partir do advento da Reforma Trabalhista em 2017.
A Loggi é uma empresa de tecnologia que, através de plataforma online, agencia e conecta motofretistas para realizar entregas que são solicitadas pelos usuários do serviço. A empresa funciona de maneira similar ao Uber e outros aplicativos afins e, portanto, a decisão pode, futuramente, orientar outras determinações judiciais para as demais empresas que operam no modelo on demand.
O MODO COMO A LOGGI FUNCIONA E A
RELAÇÃO DE EMPREGO
Um dos aspectos fundamentais que embasaram a decisão foi o modo como são realizados os fretamentos contratados pelos usuários do aplicativo. Segundo a juíza, embora a Loggi afirme que atua apenas como a intermediadora dos serviços entre os motoboys e os usuários, a magistrada concluiu que não há margem para o prestador de serviços negociar os termos do serviço:
“Este [motoboy] não fixa o preço, forma de pagamento, logística, prazos, não define as condições da oferta do bem. Nesse caso, quem oferece o serviço e define suas condições é o aplicativo. Os clientes são do aplicativo, não dos entregadores. A relação do cliente se dá com o aplicativo, não com o entregador (…) “
A decisão traça um paralelo entre outras plataformas que conectam usuários e prestadores de serviço, como o Mercado Livre, Airbnb e Booking. Nestes, não há como constatar um vínculo de emprego existente entre aqueles que disponibilizam seus serviços e a empresa, porque, segundo a magistrada, “nessa relação o aplicativo não dita o modo do contrato entre as pessoas, não estabelece o tempo, o meio, o valor de pagamento. O aplicativo é um intermediário”.
E concluiu que no caso da Loggi não se trata de um intermediador, uma vez que a empresa é o seu próprio realizador, os consumidores celebram contrato com a plataforma e não com o prestador de serviços, diferenciando-os de outras, como Mercado Livre:
O aplicativo não é apenas o meio da realização da transação, mas seu próprio realizador, idealizador, vendedor, empreendedor. Ele estipula as regras e o prestador de serviços e o cliente final a elas aderem como num contrato de adesão: não se negocia preço ou modo de confecção ou realização.
Dentro da lógica aplicada pela Justiça
do Trabalho, portanto, a capacidade de controle da empresa sob o negócio intermediado
aos seus usuários é diretamente proporcional à existência de vínculo de emprego
com seus prestadores de serviço.
Esta ideia é reforçada a partir da
constatação de que a Loggi assumiria totalmente os riscos da atividade
econômica, realizando a cobrança; fornecendo parte dos equipamentos; planejando
a logística das entregas; realizando o contato com o cliente em caso de
insucesso na entrega; ofertando garantias ao consumidor e prazos.
OS REQUISITOS DO VÍNCULO DE EMPREGO NO
CASO DA LOGGI
O reconhecimento do vínculo de emprego exige a ocorrência de requisitos definidos nos artigos 2º e 3º da Consolidação das Leis do Trabalho, são eles:
- habitualidade;
- pessoalidade;
- subordinação;
- onerosidade;
- alteridade.
Uma das grandes controvérsias levantadas nos debates referentes ao modo de trabalho de prestadores de serviço on demand, como Loggi e Uber, está na possibilidade do motorista ou motociclista negar a prestação de serviços, se não desejar realizá-la, impedindo, em tese, que houvesse uma habitualidade na prestação de serviços, uma vez que poderia trabalhar o tempo que quisesse, a hora que quisesse.
Entretanto, ao enfrentar esta questão,
a decisão traz em seus fundamentos, um aspecto introduzido a partir da Reforma
Trabalhista: a modificação da percepção de habitualidade a partir dos contratos
de trabalho intermitentes (artigo 443, §3º da CLT).
O contrato intermitente é uma
modalidade de contrato de trabalho em que o empregado permanece aguardando a
convocação do empregador para trabalhar. Embora possa não haver habitualidade
na prestação de serviços pelo empregado neste modelo, isto não impacta no
reconhecimento deste trabalhador como empregado.
Desta forma, a magistrada concluiu que
o atual conceito de habitualidade se encontra reduzido ao ponto em que a
prestação, ainda que esporádica, de serviços teria condão de indicar a existência
de uma relação empregatícia:
Se antes o trabalho aleatório, ou convencionado por atividades certas, ou de curto período, não ensejavam a caracterização do vínculo empregatício, hoje podem caracterizar, à semelhança do contrato intermitente, trazido com a Reforma Trabalhista (Lei no 13.467/2017)
No que tange a pessoalidade, a
sentença dispôs que, por exigir login de seus prestadores, somente aqueles que
o possuem poderiam realizar os fretamentos, de modo que não seria possível para
o motorista repassar os fretes para outros:
“(…) Por lógico não poderia outrem fazer a entrega para a LOGGI, senão quem estivesse “logado”. Apenas os condutores cadastrados podem fazer login na plataforma para receber o serviço de frete. É através do login pessoal na plataforma digital que a empresa oferece os fretes a serem feitos e apenas aquele login que aceita pode fazer o serviço. “
E acrescenta que, por existir diversos
requisitos para cadastramento de motoristas, como habilitações especiais para
condução de veículos e afins, a transferência do serviço para outro motorista
seria considerado fraude e, portanto, a pessoalidade da prestação estaria
caracterizada:
“O condutor cadastrado não pode passar o serviço a terceiro, sob pena de fraude ao sistema, como é lógico. Se o login é do condutor João, não poderá José fazer a entrega. Isso traduz pessoalidade na prestação de serviços.”
No
que tange à subordinação – fator mais preponderante da relação empregatícia –, a
magistrada alega que “a subordinação estrutural é evidente”.
A
subordinação estrutural é aquela que surge a partir da inserção do trabalhador
na dinâmica operacional da empresa contratante. Ou seja, quando sua função está
intrinsecamente ligada a cadeia produtiva e da atividade econômica
desempenhada, estará subordinado estruturalmente.
Ocorre
que tal espécie de subordinação era utilizada pelo Poder Judiciário à época em
que somente era possível terceirizar atividades meio da empresa. Atualmente, o
artigo Art. 4º-A da Lei n. 6019/74 dispõe claramente a possibilidade de
terceirizar-se a atividade fim da empresa. No mesmo sentido dispõe o Tema n.
725 do STF.
Portanto,
não seria mais possível inferir que a inserção, por si, do trabalhador na
cadeia operacional é fator indicativo de relação de emprego, sendo irrelevante
a suposta evidência deste indicativo sem a necessária comprovação pormenorizada
da subordinação clássica no caso concreto.
Dessa forma, a magistrada avançou na análise da subordinação supostamente existente entre os motofretistas e a Loggi.
Utilizando a mesma lógica da análise
da pessoalidade, a sentença dispôs que o fato do motorista poder recusar o
serviço não implicaria a inexistência de subordinação, uma vez que nos
contratos intermitentes é facultado ao empregado recusar o serviço sem
desnaturar a relação jurídica:
O condutor
não escolhe cliente ou serviço; ele apenas
aceita ou não o serviço que é ofertado pela plataforma. E
como se viu acima, a não aceitação não
desnatura a relação de emprego, visto que nem a ausência
de trabalho por mais de mês o faz, como
no trabalho intermitente.
Ao passo que a impossibilidade de
negociação da remuneração pelo trabalhador foi fator considerado indicativo de
inexistência de trabalho autônomo:
“A contraprestação mais importante ao serviço é a remuneração. Se não há negociação quanto a esta, trabalho autônomo não é”
A
linha de raciocínio percorrida pela decisão neste ponto encontra alguns óbices
em nossa visão. A impossibilidade de negociação de preços é aspecto controvertido
na identificação da subordinação, uma vez que a contrapartida é por produção,
sendo o motofrentista um comissionista puro e, portanto, recebedor de
remunerações variáveis.
Ademais, o preço final não é fixo por corrida, mas apenas os fatores que compõem o valor final, conforme se verifica do próprio site da Loggi:
Para pedidos LB4, a forma de remuneração segue o padrão abaixo:
- Valor por ponto entregue: R$3,00
- Quilômetro rodado: R$0,95
- Média de pontos por rota: 45
- Entrega mínima*: R$150,00
*Paga somente em casos em que 90% da rota é entregue. Bônus**: R$20,00 **Pago somente em casos em que 100% da rota é entregue.
Neste
caso, a contraprestação do motorista se assemelha a qualquer representante
comercial que ganha comissões fixadas pela contratante em cima das vendas
realizadas. Embora as comissões sejam pré-estabelecidas, o valor final
percebido pelo trabalhador variará conforme a venda final e a quantidade de
vendas efetuadas.
Outro
aspecto considerado controvertido na análise da subordinação é a não realização
das atividades de distribuição e logística por parte do motorista, como se
verifica da fundamentação:
“O modo de distribuição do serviço é feito pela plataforma. Não é o motofretista que gerencia a distribuição. O condutor não escolhe cliente ou serviço; ele apenas aceita ou não o serviço que é ofertado pela plataforma.”
A
contratação do motofrentista não inclui a gestão da distribuição ou a logística
em si, mas simplesmente o serviço de condução e entrega do produto.
O
fato de ser determinado e específico o escopo de atuação do trabalhador não
deveria, em tese, ser indicativo de subordinação, pois é justamente no contrato
de trabalho que o empregado cede sua mão de obra para serviços indeterminados
que englobam todos aqueles que lhe sejam corolários.
Por fim, a alteridade do trabalho dos
motofrentistas ficam evidenciada, segundo a magistrada, pelo fornecimento de determinados
equipamentos por parte da empresa para o motofretista:
Em
que pese os instrumentos serem dos motofretistas, a LOGGI forneceu como prêmio
baús e jaquetas. Se o modo de conquista dos equipamentos são questionados pelo
MPT, ao menos servem para amenizar a precariedade da prestação de serviços.
AS OBRIGAÇÕES DA LOGGI E OS EFEITOS DA
DECISÃO
Com o reconhecimento do vínculo de
emprego entre a Loggi e seus prestadores de serviço, a empresa será também obrigada
a observar a legislação referente aos motofretistas, incluindo, por exemplo:
abster-se de pagar prêmio por produtividade (artigo 1º da Lei 12.436/11); pagar
adicional de periculosidade (artigo 193 da CLT); fornecer imóvel para que os
condutores permaneçam entre as conduções; contratar apólice de seguro para os
casos de invalidez permanente; controlar a jornada de trabalho, abstendo de
prorrogá-la; fornecer equipamento de proteção individual.
O CONFLITO ENTRE O SUPERIOR TRIBUNAL
DE JUSTIÇA E A JUSTIÇA DO TRABALHO
O Superior Tribunal de Justiça, em
setembro, poucos meses antes da presente decisão, havia determinado que não há
vínculo de emprego entre os motoristas que prestam serviços para a Uber.
Embora sejam empresas diferentes, os pressupostos
que fundamentam a decisão da 8º Vara do Trabalho de São Paulo, poderiam servir
para uma eventual Ação Civil Pública nos mesmos moldes.
Desta forma, percebe-se que embora haja
a determinação de reconhecimento da relação de emprego, ainda há muita
controvérsia neste tópico, de modo que nem o próprio Poder Judiciário entre em
consenso consigo.
Ademais, há precedentes no mesmo
sentido do STJ no próprio Tribunal Regional do Trabalho da Segunda Região, no
qual está inserido a Vara do Trabalho que julgou este caso.
Assim não é possível atestar se a
presente decisão irá permanecer em vigor após a reanálise pelos desembargadores
do Tribunal do Trabalho.